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domingo, 16 de dezembro de 2012

SINGELO FINAL


Constatar que as mãos pareciam vagas foi a primeira lembrança, depois do acidente no mar, a misturar-se com diálogos embebidos em controvérsias inúteis. Tudo começara na busca de um verbo. Um empreendimento quase mecânico, se não ocultasse um sonho.
O verbo procurado deveria estar entre as duas últimas letras de um alfabeto proscrito, em decorrência de uma guerra ocorrida, no p...
enúltimo século que antecedeu nossa era. Contudo, uma lei que rege os jogos e preconiza a inutilidade dos atos falou mais alto. O verbo, dotado da infinita capacidade de realizar o pleno discernimento, fora conjugado por um guerreiro idoso, ferido em combate por flecha. Esse era o único registro desse vernáculo imemorial.
Alguns dos que viveram esse embate já esquecido, entre tantos, assistiram ao balbuciar do guerreiro agônico e tentaram decifrar-lhe a frase e a liturgia que a precedia. Mas dele só conseguiram escutar palavras, que lhes devolviam as lembranças do início do mundo: O verbo fora conjugado em um tempo verbal desconhecido e, além disso, sussurrado pela boca moribunda dos que se despedem das palavras.
Com os anos, nem dos rumores desta lenda, precariamente resgatada, ficou registro. Uma briga de irmãos em uma obscura aldeia, onde haveria mais tarde um país, alterou para sempre a conjugação e o sentido da palavra original. E por isso a história humana foi para sempre desfigurada, da mesma forma, como um cometa alterou acidentalmente sua rota há milhões de anos, possibilitando com isso a existência dos homens e dos livros. Agora, as palavras resgatavam seus verdadeiros contornos. O acidente no mar fora para aquele pescador a última etapa de seu percurso de mapeador das lembranças. Resignou-se doravante a ser o tutor de seus próprios esquecimentos. Abdicou então para sempre da idéia de perseguir o vernáculo, para o qual não tinha sido eleito. Feito isto, retirou-se para uma vida anônima e envelheceu triste, sem perceber que um menino nasceria, que conjugaria corretamente o verbo apagado da memória de seus ancestrais. E isso abriria uma nova idade de luz sobre o mundo, seguida de outra era de violência e trevas, e assim sucessivamente, até que bruscamente a odisséia humana seria interrompida por um cometa que acidentalmente alterou sua rota. Então seríamos conjugados pelo esquecimento e por um Deus que nunca vimos, mas que o guerreiro ferido viu nos estertores da morte, quando se negou a dizer o que vos adianto nesse singelo final. Ele apenas anunciou que acontecemos.
Francisco Orban

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