A noite por dentro das horas e do amor
e os rostos deitados no chão do mundo
Assim caminháva-se
Trinta milhões de cigarras na pele das calçadas
e as pedras suando
e o cheiro de rio mata e silêncio
e eu sem saber navegar
e sem saber do mar
e o ônibus 614 levando os meninos
e meninas
com seus destinos de vento
e se embrenhando por outros caminhos
e não chegando ao seu paradeiro
Nada mais se sabe desta terra
nem do rosto dos seus encantados
nem das disputas de carros
nas madrugadas das noites
de um mundo sem fuso- horários
O ônibus 614 passou
me arrastando para fora do tempo
para onde me deixei levar
Éramos filhos da terra
e havia os heróis desavisados
os balões que subiam nas noites acesas
e seus caçadores pela madrugada
e o espírito da mata sobre os sonhadores
e os primeiros amores
e as guitarras que cumpriam seus acordes
e os dias com seus mares abertos
fora do tempo, onde caiu pelo ralo
a chave do mundo
e meu destino sem retorno
juntos
Ventava nas janelas do tempo
ventava dentro da vida e da morte
ventava entre os versos vedados
e um rio entre nossas mãos passava
e nossas mãos desciam pelo rosto do mundo
onde o ônibus 614 passava
antes de embrenhar-se no nada
e nos amarrar para sempre
nas tramas do absoluto
O ônibus 614 atravessou vinte quadras
antes de cair no infinito
Um rio atravessava a cidade
sob a chuva que se estendeu por cem horas
entre pedras caminhões estrelas mortas
tudo desceu pelo dedo das horas
naquela vida assombrada
em que para sobreviver era preciso nascer
em que para nascer era preciso descer
no ônibus 614
em um dia qualquer de fevereiro
no ano de 1968
em um mundo sem palavras
em pleno estado de comunhão
Não estava escrito nos braços
dos navegantes
nem no navio que nos fez sair
do dia comum
onde nos vimos em silêncio
recostados nos mesmos bares e verbos
imunes ao tempo e seu grande cenário
enquanto o ônibus 614
passava
levando os meninos e meninas
com seus destinos de vento
Ventava nas janelas do tempo
ventava dentro da vida e da morte
ventava entre os versos vedados
e um rio entre nossas mãos crescia
e sua face era um rosto de terraços
a nos amarrar para sempre
nas tramas do absoluto
O ônibus 614 atravessou vinte quadras
antes de cair no infinito
Tramo com o dia um poema
que se torne passagem
Tramo com os pescadores
uma canção para ninar o mundo
Enquanto o mundo não se nina
eu nino meu filho que me afaga
esperando o ônibus 614
que sempre me acena com a sua viagem impossível
antes de capotar nas ruas reais do dia
O ônibus 614 desceu a rua Rocha Miranda
e viu Cristina Maria feita de adolescência
e passou por dentro do tempo
entre as árvores desencontradas da esperança
pela experiência de ser guiado por uma estrela
que também por nós se guiava
pelos corredores azuis da noite
com o mapa do mar no bolso
com o mapa das águas no coração
Mínimos meninos
pisando nos trilhos de um trem que ia da alegria
a Itaguaí
mas que foi desativado
como foram oceanos
bichos palavras amores amigos
lutas violões ventanias
Do livro de Francisco Orban, Recomendações aos sohadores
( Ed 7Letras)