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quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

ônibus 614

 

A noite por dentro das horas e do amor

e os rostos deitados no chão do mundo

Assim caminháva-se

Trinta milhões de cigarras na pele das calçadas

e as pedras suando

e o cheiro de rio mata e silêncio

e eu sem saber navegar

e sem saber do mar

e o ônibus 614 levando os meninos 

e meninas

com seus destinos de vento

e se embrenhando por outros caminhos

e não chegando ao seu paradeiro

Nada mais se sabe desta terra

nem do rosto dos seus encantados

nem das disputas de carros

nas madrugadas das noites

de  um mundo sem fuso- horários

O  ônibus 614 passou

me arrastando para fora do tempo

para onde me deixei levar


Éramos filhos da terra

e havia os heróis desavisados

os balões que subiam nas noites acesas

e seus caçadores pela madrugada

e o espírito da mata sobre os sonhadores

e os primeiros amores

e as guitarras que cumpriam seus acordes

e os dias com seus mares abertos

fora do tempo, onde caiu pelo ralo

a chave do mundo

e meu destino sem retorno

juntos


Ventava nas janelas do tempo

ventava dentro da vida e da morte

ventava entre os versos vedados

e um rio entre nossas mãos passava

e nossas mãos desciam pelo rosto do mundo

onde o ônibus 614 passava

antes de embrenhar-se no nada

e nos amarrar para sempre

nas tramas do absoluto

O ônibus 614 atravessou vinte quadras

antes de cair no infinito




Um rio atravessava a cidade

sob a chuva que se estendeu por cem horas

entre pedras caminhões estrelas mortas

tudo desceu pelo dedo das horas

naquela vida assombrada

em que para sobreviver era preciso nascer
 
em que para nascer era preciso descer

no ônibus 614

em um dia qualquer de fevereiro

no ano de 1968

em um mundo sem palavras

em pleno estado de comunhão

Não estava escrito nos braços

dos navegantes

nem no navio que nos fez sair

do dia comum

onde nos vimos em silêncio

recostados nos mesmos  bares e verbos

imunes ao tempo e seu grande cenário

enquanto o ônibus 614

passava

levando os meninos e meninas

com seus destinos de vento

Ventava nas janelas do tempo

ventava dentro da vida e da morte

ventava entre os versos vedados

e um rio entre nossas mãos crescia

e sua face era um rosto de terraços

a nos amarrar para sempre 

nas tramas do absoluto



O ônibus 614 atravessou vinte quadras

antes de cair no infinito

Tramo com o dia um poema

que se torne passagem

Tramo com os pescadores

uma canção para ninar o mundo

Enquanto o mundo não se nina

eu nino meu filho que me afaga

esperando o ônibus 614

que sempre me acena com a sua viagem impossível

antes de capotar nas ruas reais do dia

O ônibus 614 desceu a rua Rocha Miranda

e viu Cristina Maria feita de adolescência

e passou por dentro do tempo

entre as árvores desencontradas da esperança

pela experiência de ser guiado por uma estrela

que também por nós se guiava

pelos corredores azuis da noite

com o mapa do mar no bolso

com o mapa das águas no coração

Mínimos meninos

pisando nos trilhos de um trem que ia da alegria

a Itaguaí

mas que foi desativado

como foram oceanos

bichos palavras amores amigos

lutas violões ventanias

    
                       Do livro de Francisco Orban, Recomendações aos sohadores 
                                                                            ( Ed 7Letras)





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